today-is-a-good-day





Sexta-feira, 29 de março de 2024




Médica desiste de eutanásia e vai entregar corpo para estudo: “Não quero morrer em vão”

A médica Letícia Franco, 36 anos, que havia anunciado que iria para a Suíça ser submetida a morte assistida, desistiu da ideia e tomou uma nobre decisão: ela irá entregar seu corpo para ser estudado pelo médico israelense Yehuda Shoenfeld, especialista na síndrome Asia, que a atinge, e, com isso, espera conseguir salvar vidas de pessoas com a mesma doença.

Letícia ficou internada com fortes dores, na UTI do Hospital Santa Rosa, em Cuiabá, desde o dia 02 de março até essa terça-feira (13), quando voltou para casa e recebeu a reportagem do LIVRE para contar a história de dor e superação que tem vivido nos últimos oito anos.

Com boa aparência, mas ainda um pouco abatida pelos 12 dias de internação, Letícia nos recebeu em seu quarto, que se difere de um cômodo comum pelo fato de ter diversos aparatos médicos, necessários para seu bem-estar e locomoção. Com a voz rouca, mas completamente segura do que diz, Letícia se mostrou forte e pronta para recomeçar sua batalha contra a síndrome Asia.

caso de Letícia ganhou notoriedade em todo Brasil, e até em outros países, depois que ela divulgou, em sua página no Facebook, que viajaria para a Suíça para se submeter à morte assistida. A médica afirma que nunca tinha pensado em desistir e sempre havia lutado para sair da UTI e retornar à vida, mas naquele dia sua dor era tão intensa, que já não encontrava forças para continuar.

“A ideia da eutanásia surgiu pelo medo, pela dor constante e por ninguém acreditar em mim. Eu conversei com meus familiares, no primeiro instante eles aceitaram, ‘não vamos deixar nossa filha sofrer como está sofrendo’”, contou.

Letícia tinha medo de a doença a atingir cada vez com mais força e medo de ver os pais sofrerem por estarem perdendo sua filha aos 36 anos. Desde que descobriu a doença, em 2010, Letícia foi internada 34 vezes. Ela chegou a ser aceita pela clínica Dignitas, que tem sede na Suíça e na Alemanha, e tinha optado pela Suíça por eles falarem inglês. Só não foi se submeter à morte assistida porque a mãe desistiu de levá-la.

“Mas até eu entendi, como vou pedir pra minha mãe: ‘mãe, me leva pra morrer?’”. Durante a entrevista, ela chegou a pedir perdão pela publicação na rede social, dizendo que queria apenas se despedir da família, que mora no Paraná, e dos amigos.

Sobre a ideia de doar o corpo para ser estudado e ajudar na busca da cura para a sua doença, Letícia diz que seus pais aceitaram depois que ela afirmou que isso traria sentido ao seu sofrimento.

“Eu falei: ‘pai, mãe, pensem aqui comigo’, eles estavam chorando, ‘vocês não estariam chorando hoje se há 10 anos alguém tivesse feito isso, tivesse se doado para salvar outras pessoas? Então eu estou atrás disso’”, lembrou a médica.

Ela contou que já testou mais de 20 remédios e associações, buscando algum tipo de cura, ou ao menos diminuir a dor. E agora pedirá para o médico Yehuda Shoenfeld que a aceite em seu instituto, com vida, ou após a morte, e que estude cada célula do seu corpo.

Casamento cancelado

Antes da doença, Letícia tinha uma vida comum: uma médica, que sempre amou a vida e fazer trabalhos voluntários, praticava esportes e fazia parte do pelotão de elite em corridas de rua de Mato Grosso.

Letícia costumava praticar esportes e sempre se dedicou a trabalhos voluntários

Ela implantou o silicone nos seios aos 17 anos, em 1998, sem saber que tinha a “genética favorável” para a síndrome Asia. Aos 28 anos, em 2009, pouco depois de 10 anos após o implante, prazo em que normalmente a doença aparece, sua vida mudou da noite para o dia.

“Eu parei numa UTI. Eu ia me casar, estava noiva e faltavam apenas três meses para me casar. Acabou o casamento, acabou tudo, porque eu estava na UTI. Quebrei a perna, fiquei toda quebrada, toda inchada, ninguém sabia o que eu tinha. Parecia um monstro de tão feia que a gente fica, entubada, no ventilador”, lembrou.

“É uma miosite que aparece, que destrói os nossos músculos do corpo inteiro, braços, pernas e até músculo de diafragma; você para de respirar de repente, ela não dá sinais, mas ela chega”, disse.

Três anos de cama

Depois da primeira internação na UTI, vieram outras 33. Letícia ficou em coma, teve uma insuficiência respiratória grave, parou de respirar, precisou ser entubada, usou traqueostomia por quatro meses e só retornou para casa porque tinha o atendimento de homecare.

“Me deram três pulsos de corticoide em menos de dois meses, o que é uma coisa muito forte, que só se dá uma vez por ano e olhe lá. Eu inchei tanto que ganhei mais de 40 quilos. A doença pegou a minha bexiga, ela não funciona mais; para eu urinar tenho que passar uma sonda de alívio a cada quatro horas”, contou.

Letícia está, pela segunda vez, com a perna esquerda quebrada. Também já quebrou o fêmur de forma espontânea e tem prótese de quadril. Todas essas fraturas foram consequências do mero esforço de ficar de pé. Em um dos tratamentos em busca de melhorias em seu quadro, ela utilizou corticoides, que acabaram levando a um quadro de osteoporose gravíssimo.

“Eu não posso ficar em pé por mais de uma hora, que eu me quebro; então eu fico deitada numa cama. Eu tenho 36 anos, sou médica, uma médica que sempre ajudou as pessoas, já fiz vários projetos humanitários, gosto de viver, amo a vida”, disse. “Mas essa doença tirou a minha alegria de viver, porque há três anos eu estou assim, em uma cama”.

Durante os oito anos da doença, Letícia viveu várias fases, entre melhoras e pioras. Durante quase todo o tempo, ela esteve lúcida e pôde estudar sua doença. Buscou ajuda em São Paulo – na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Paulista (UNIP), e até em Israel, com o médico Yehuda Shoenfeld, mas, até hoje, nenhuma cura foi encontrada.

Shoenfeld foi o primeiro a descobrir a doença e tenta encontrar uma cura há muitos anos. Em uma matéria publicada pelo Estadão, em 2014, ele explicou como funciona a síndrome Asia – causada por vacinas com muito alumínio, ou pela prótese de silicone – que provoca uma reação anormal do sistema imunológico, levando as células de defesa a agirem contra o próprio corpo.

“No caso do silicone, essa reação pode ocorrer quando há ruptura da prótese, mas também quando ela está íntegra, porque o implante libera algumas moléculas na corrente sanguínea. Já a vacina tem substâncias como o alumínio, que provocam essa reação”, disse à época, em Punta del Este, no Uruguai, onde participou do Congresso da Liga Panamericana de Associações de Reumatologia (Panlar).

Exame pré-cirúrgico

Letícia acredita que a doença mereça ser mais divulgada e quer alertar para a importância de o exame que pode indicar a pré-disposição à síndrome Asia ser realizado antes da colocação de prótese.

“É importante avisar ao mundo que isso existe e que existe um exame sorológico e genético, feito pelo sangue, que diz se a pessoa tem propensão, ao colocar prótese de silicone, a desenvolver essa doença. Não é todo mundo que coloca silicone que vai ter isso, mas muita gente tem uma genética favorável. Por que não fazer esse exame também? Por que não salvar as pessoas disso?”, questiona Letícia.

“Assim como eu estou morrendo por essa doença, várias pessoas já morreram, sem diagnóstico, ou até mesmo com diagnóstico. E a gente é muito desacreditado, a gente chega no hospital e ouve: ‘você está bonita, não tem nada’, mas por dentro a gente está morrendo”.

Ela contou que seu caso é tão raro que não existe outro no mundo e, quando procurou Shoenfeld pela primeira vez, ele escreveu apenas que o quadro de Letícia “era possível existir”.

“Eu sou o caso mais raro dessa doença, porque eu tenho a expressão de quatro doenças autoimunes juntas, que estão me matando por dentro: dermatomiosite, esclerodermia, lúpus e esclerose múltipla”.

A doença já afetou, além da aparelho respiratório e da bexiga, o coração, o pulmão e o rim. Ela já parou de andar por várias vezes, atualmente usa cadeiras de rodas e tem próteses e pinos em vários pontos das duas pernas. Na última vez que Letícia procurou o médico a quem pretende se entregar para estudo, ele afirmou que ela tem somente mais um ano de vida.

“É meu último ano de vida. A doença, no ano passado, foi a coisa mais triste do mundo para mim e para minha família. Eu fiquei em casa apenas três meses e com respirador. Imagina como foi para os meus pais: eu dentro de uma UTI, toda entubada, em coma. Depois, consegui acordar do coma e não reconhecia meus pais, demorou para eu saber quem eles eram, quem eu era. Não sabia meu nome e pensava que meu avô falecido estava vivo. Tudo é muito triste nessa doença e a doença vem de uma forma tão doída… a gente sente dor o dia inteiro”, relatou.

Imagem publicada por Letícia quando anunciou que iria se submeter à morte assistida

“Boa sorte”

Ela reclamou do fato de a maioria dos médicos no Brasil não buscarem pesquisar sobre doenças raras e afirmou que muitas vezes foi desacreditada pelos colegas, que chegaram a chamá-la de louca e viciada em remédios, mesmo ela tendo atestado de lucidez por psiquiatras.

“Como não se tem o que fazer, não tem tratamento para essa doença, que pelo menos os médicos não fossem tão cruéis. A maioria dos reumatologistas de Cuiabá não quiseram me atender”, lamentou.

“Não é assim que se deve tratar um paciente terminal: não é fechar a porta do consultório e falar ‘boa sorte’. Eu acho que devia ter mais humanidade nos médicos, de saber tratar um paciente terminal, ‘vamos dar qualidade de vida para ela pelo menos, vamos tirar a dor, deixar essa menina um pouco alegre, vamos tirar o medo da cabeça dela’”.

Passando muitos dos seus dias internada, Letícia reclamou da falta de sensibilidade dos colegas médicos com pessoas com doenças terminais

Letícia garante que a eutanásia não faz mais parte do seu pensamento, que sempre foi uma pessoa de doação – seja quando pequena, cuidando dos animais na rua, seja já como oftalmologista, operando as pessoas gratuitamente, comprando óculos para seus pacientes – e que acredita que essa possibilidade de se doar para estudos possa ser sua grande missão em vida.

“Tudo que eu fiz na minha vida foi doação para o próximo e eu acho que não há nada mais bonito que eu me doar, então, para que todo mundo tenha vida”, disse.

“Agora que eu tenho voz, eu acho que é importante que o mundo saiba que existe não somente eu, mas existem muitas pessoas chamadas ‘raras’. Na internet existe o grupo ‘muitos somos raros’, que fala também de polimiosite e dermatopolimiosite. Muitos desses pacientes têm diagnósticos errados; está na hora de o mundo acordar, de abrir os olhos dos médicos”, clama Letícia, com a autoridade de quem sabe – e sente na pele – o que está dizendo.


spot_img


Pular para a barra de ferramentas