Sexta-feira, 19 de abril de 2024



CNJ aprova resolução sobre tratamento à população lésbica, gay, bissexual, transexual e travesti

O Conselho Nacional de Justiça aprovou no dia 02/10/2020 resolução sobre tratamento à população lésbica, gay, bissexual, transexual e travesti. O processo foi autuado nos autos 0003733-03.2020.2.00.0000, como ato normativo, da relatoria do conselheiro Mário Guerreiro. O texto ficou assim: “Com o propósito de desenvolver instrumentos que promovam e assegurem os direitos fundamentais da população LGBTI submetida à persecução penal, encarcerada ou em cumprimento de alternativas penais ou monitoração eletrônica, apresento à apreciação do Plenário deste Conselho a presente proposta de ato normativo, que prevê diretrizes e procedimentos a serem observados pelo Poder Judiciário, no âmbito criminal, com relação ao tratamento do aludido grupo de pessoas. Adoto a manifestação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) sobre o tema como razão de decidir: “[…] Com efeito, o cenário atual é marcado pela intolerância com a diversidade de gênero e de orientação sexual, de modo que a população lésbica, gay, bissexual, transexual, travesti ou intersexo enfrenta graves situações de discriminação e violência.

Por outro lado, a população carcerária sofre sério estigma social e vivencia grande vulnerabilidade, sobremodo na atual situação do sistema penitenciário, marcado por falhas estruturais e de políticas públicas, com desrespeito constante a direitos fundamentais, em verdadeiro ‘estado de coisas inconstitucional’, consoante ressaltado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 347 MC e do RE 641.320. Consoante destacado pelo Ministro Roberto Barroso, em decisão liminar proferida na ADPF 527, ‘transexuais e travestis encarceradas são, assim, um grupo sujeito a uma dupla vulnerabilidade, decorrente tanto da situação de encarceramento em si, quanto da sua identidade de gênero. Trata-se de pessoas ainda mais expostas e sujeitas à violência e à violação de direitos que o preso comum’. Em que pese a decisão mencione apenas travestis e transsexuais – por se tratar do tema específico da ADPF – a constatação se aplica igualmente às lésbicas, gays, bissexuais e pessoas intersexo, que também se inserem num contexto de maior exposição a violações de direitos. Conforme destacado pelo Ministro Roberto Barroso no citado voto, segundo ‘o relatório da Organização das Nações Unidas, há registros contundentes, por parte de comitês antitortura e órgãos e entidades de defesa de direitos humanos, acerca da prática de violência física, de abuso e de escravização sexual nas prisões, especificamente dirigidas às populações LGBTI, em razão da sua identidade de gênero ou orientação sexual, eventualmente com o apoio de servidores estatais, em situações equiparáveis a atos de tortura e de tratamento cruel no entendimento da própria ONU’.

Embora os direitos das pessoas LGBTI encarceradas sejam decorrência das disposições constitucionais, dos tratados internacionais de direitos humanos e da legislação aplicável ao processo e à execução penal, a especial suscetibilidade a violação de direitos demanda atos normativos específicos, que, todavia, ainda são escassos. No âmbito externo, cumpre ressaltar os Princípios de Yogyakarta, de 2007, que tratam da aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero e preveem que os Estados devem adotar medidas voltadas para a população LGBTI em privação de liberdade, a fim de minimizar risco de maus-tratos e abusos, evitar maior restrição de direitos e assegurar, conforme as possibilidades, que participem das decisões que digam respeito ao local adequado para cumprimento da pena. Ainda no cenário internacional, merece destaque a Decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, na Opinião Consultiva OC-24/7, de 24 de novembro de 2017, reconheceu expressamente a orientação sexual, a identidade de gênero e a expressão de gênero como categorias protegidas pelo artigo 1.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Como consequência, concluiu-se que está proscrita pela Convenção qualquer norma, ato ou prática discriminatória baseada na orientação sexual ou na identidade de gênero das pessoas.

No âmbito interno, por sua vez, encontra-se vigente a Resolução Conjunta nº 1, de 15 de abril de 2014, do Conselho Nacional de Combate à Discriminação – CNCD/LGBT e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPC, que estabelece parâmetros de acolhimento de pessoas LGBT em privação de liberdade no Brasil. Mais recentemente, o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) divulgou a Nota Técnica nº 60/2019, que aborda o tratamento de pessoas LGBTI custodiadas no sistema prisional do país, bem como lançou consulta pública para posterior transformação do documento em manual e em curso à distância para a capacitação de agentes penitenciários. Verifica-se, ainda, que em 05 de fevereiro de 2020, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos publicou o relatório ‘LGBT nas prisões do Brasil: Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento’, com levantamento acerca do tratamento penal de LGBT no sistema carcerário brasileiro. O diagnóstico destaca a inexistência de equalização das práticas dispensadas para essa população e informa haver Estados em que a pauta é invisibilizada, de modo que ‘os procedimentos das unidades prisionais não garantem sequer a identificação dos indivíduos LGBT, quiçá qualquer prática que tenha em vista reduzir a vulnerabilidade específica a qual as travestis, mulheres transexuais e gays estão submetidos nas prisões masculinas’.

O diagnóstico conclui, então, que ‘a vulnerabilidade generalizada à qual os LGBT estão submetidos deve aparecer neste relatório como a categoria majoritária e que, em maior ou menor medida, é vivida por todos os indivíduos dessa população. (…) O risco é generalizado e evidente, e esse tipo de percepção exige, com requintes de urgência, ações concretas e duradouras que garantam a sobrevivência dessas pessoas, bem como atenção às demandas específicas dessa população’. O contexto de constante desrespeito aos direitos fundamentais das pessoas sob custódia do Estado, em especial às que pertencem à população LGBTI, demandam a adoção de medidas adicionais, de cunho normativo e administrativo, impondo-se a atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), devido ao seu papel central no controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário e no estabelecimento de políticas judiciárias de âmbito nacional. Cumpre destacar que o CNJ, no âmbito do Programa Justiça Presente, vem desenvolvendo estratégias e subsídios para a promoção da cidadania e a garantia de direitos das pessoas privadas de liberdade. A presente Resolução insere-se, portanto, nesse conjunto de esforços e representa um avanço no sentido de oferecer diretrizes de atuação à magistratura nacional e fortalecer o papel do Poder Judiciário para a construção de uma política pública com reflexos efetivos no aprimoramento do sistema carcerário.

O ato normativo trata a questão de forma sistemática e confere, nas disposições iniciais, especial destaque aos objetivos da norma: a garantia dos direitos à vida, à integridade física e mental, à autodeterminação de gênero e sexualidade, entre outros, considerando o dever estatal de assegurar todos os direitos da pessoa privada de liberdade que não atingidos pela sentença ou pela lei, consoante disposto no art. 3º da Lei de Execução Penal. A Resolução aborda os conceitos necessários à aplicabilidade da norma, os quais partem da distinção entre orientação sexual e identidade de gênero com base na definição adotada pelo glossário do movimento ‘Livres e Iguais’ das Nações Unidas, mas não se mostram exaustivos, uma vez que a proteção conferida é expressamente aplicável em casos de outras formas de orientação sexual, identidade e expressões de gênero além da heteronormativa e cisgênera. Ademais, destaca-se que a identificação como lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis ou intersexo deve ser fundada na autodeclaração da pessoa e pode ou não ser exclusiva, bem como variar ao longo do tempo e do espaço.

A mencionada diretriz encontra ressonância, inclusive, nas constatações apresentadas no diagnóstico ‘LGBT nas prisões do Brasil’, em que se aponta a ausência de consenso entre o movimento social organizado e também na narrativa das travestis e mulheres trans privadas de liberdade, no que diz respeito ao local de cumprimento da pena, ou seja, se é preferível a alocação em unidades femininas ou a reserva de espaços em unidades masculinas. No referido relatório, destaca-se que assumir o argumento baseado na coerência entre as instituições do Estado e a identidade de gênero como imperativo para alocação compulsória é ignorar ‘os altos riscos à vida que um encaminhamento indevido pode causar a essas pessoas’, concluindo pela existência de ‘apenas um posicionamento possível: a transferência mediante consulta individual da travesti ou da pessoa trans’. O ato normativo proposto, ademais, traz diretrizes para resguardar o direito ao nome social – pelos transexuais, travestis e pessoas intersexo submetidas à persecução penal – a fim de zelar pelo próprio direito à igualdade, que abrange a identidade ou expressão de gênero, como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 4275 e no RE 670422.Ressalta, também, a aplicação dos direitos relativos às mulheres, que devem ser assegurados às lésbicas, travestis e transexuais, como garantia de identidade e equidade e aos homens transexuais, quando cabível, e apresenta regramento direcionado ao juízo de execução penal, no exercício de sua competência de fiscalização, aplicável às visitas sociais e visitas íntimas, à assistência à saúde e assistência religiosa, ao trabalho, à educação e à autodeterminação.

Por fim, e em que pese a absoluta distinção entre o sistema prisional e o sistema socioeducativo, há previsão de aplicação das normas apresentadas na resolução aos adolescentes apreendidos, processados por cometimento de ato infracional ou em cumprimento de medida socioeducativa que se enquadrem nas categorias LGBTI, no que couber e feitas as devidas adaptações, tão somente a fim de assegurar maior proteção até o advento de norma que trate da matéria de forma específica. O objetivo, portanto, é estabelecer normas que possibilitem a efetiva atuação do Poder Judiciário na promoção do princípio da dignidade humana, de modo a reduzir a vulnerabilidade da população LGBTI submetida à persecução penal, coibir as diversas formas de violência a que está submetida e evitar que o processo criminal ou a aplicação de pena represente maior marginalização e restrição de direitos. […]”. Ante o exposto, voto pela aprovação da minuta anexa. É como voto. Conselheiro Mário Guerreiro, relator”. (Jornalista Ronan Almeida de Araújo – DRT-RO-431-98).

 

[pdf-embedder url=”https://www.povoemalerta.com.br/midia/2020/10/pv-lista.pdf” title=”Lista de processos da sessão – Portal CNJ”]


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