Domingo, 05 de maio de 2024



Membro acusado de pertencer a uma Orcrim, MPF manifesta para desclassificar o crime apenas de estelionato ante à coleta de provas ilícitas

José Roberto Pimenta Oliveira, procurador regional da República do Ministério Público Federal da 3ª Região, deu seu parecer no sentido de que seja cassado o acórdão recorrido, restabelecendo-se a classificação da conduta imputada a João Ayres Rabello filho para aquela prevista no art. 171, § 3°, do Código Penal. Diz o procurador: “No exercício de suas atribuições constitucionais e legais, não se conformando com o v. acórdão Id. 137658565 proferido nos autos do processo em epígrafe, vem, tempestivamente, interpor RECURSO ESPECIAL com fulcro no art. 105, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal e nos arts. 1.029 e seguintes do Código de Processo Civil, nos termos das inclusas razões, requerendo seja o presente recurso processado, admitido e remetido ao Egrégio Superior Tribunal de Justiça para conhecimento e julgamento.

BREVE RELATO 1. Segundo consta dos autos, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL denunciou em 28.11.2018 JOÃO AYRES RABELLO FILHO e ANTONIO CARLOS BELLINI AMORIM como incurso s nas penas do art. 171, § 3°, do Código Penal. 2. A deflagração da segunda fase da “Operação Boca Livre” coletou provas de ilícitos na contratação e execução de projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura no âmbito da Lei n° 8.313/91 (Lei Rouanet), com o consequente desvio dos recursos públicos destinados a promoção de projetos culturais em nível nacional. 3. Constou ainda da peça acusatória que, não inobstante a regular captação de recursos públicos federais destinados a fomentar a cultura brasileira, foram apurados 2 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região desvios e fraudes na execução total ou parcial dos projetos culturais propostos pelo Grupo Bellini e aprovados pelo Ministério da Cultura, com o favorecimento das empresas patrocinadoras por meio de contrapartidas ilícitas, relatando que as patrocinadoras somente aportavam recursos em projetos culturais após a confirmação formal de que parte destes seria revertida em benefício próprio, na forma de eventos corporativos e produtos institucionais, sem prejuízo da isenção fiscal e futura dedução do valor correspondente no Imposto de Renda. 4.

Apontou, ademais, que as investigações levadas a efeito nos autos n° 0001071-40.2016.403.6181 e n° 0012319-03.2016.403.6181 demonstraram a participação de representantes e prepostos de patrocinadores identificados como coautores no desvio de recursos públicos e na prática do crime de estelionato contra a União, em conluio com os integrantes da BELLINI CULTURAL. Dentre esses patrocinadores, encontrava-se o BANCO CONCÓRDIA S.A. 5. Restou apurado que a referido banco aportou recursos públicos no valor de R$ 150.000,00 (cinquenta e um mil reais) para a realização do projeto cultural PRONAC 073577, denominado “Projeto Instrumental Itinerante – Solo de Violão Toquinho”, objetivando a realização de 6 (seis) espetáculos de música instrumental homenageando os 40 anos da carreira do intérprete Toquinho, com participação especial de um convidado, em diversas cidades brasileiras. 6. Contudo, verificou-se que os recursos aportados nesse projeto cultural foram desviados para a realização de show de interesse exclusivo da empresa, consistente em apresentação do cantor e compositor João Bosco, para 60 convidados, no dia 01 de outubro de 2008. 7.

Identificou-se que JOÃO AYRES RABELLO FILHO era o representante do BANCO CONCÓRDIA S.A e atuou em conluio com ANTONIO CARLOS BELLINI AMORIM visando a obtenção de vantagem de ilícita, consistente na realização de evento de interesse exclusivo da referida empresa. 3 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região 8. A denúncia foi recebida em 22.02.2019 pela Magistrada da 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo. 9. Apresentada resposta à acusação, a magistrada de piso rechaçou o pleito defensivo de desclassificação da conduta tipificada no art. 171, § 3°, do Código Penal para aquela prevista no art. 40 da Lei n° 8.313/91 (Lei Rouanet) por entender que “(…) a finalidade da conduta, tal como descrita na denúncia, não era a dedução do tributo. A dedução do tributo era o meio (fraudulento) empregado para a obtenção da vantagem ilícita, consistentes nas contrapartidas ilegais (shows, eventos, livros) obtidos pelas patrocinadoras” 1 . 10. Contra o r. decisum Armando de Souza Mesquita Neto, Ricardo Tosto de Oliveira Carvalho, Bianca Cesário de Oliveira impetraram o presente Habeas Corpus, com pedido liminar – em favor de JOÃO AYRES RABELLO FILHO. Sustentou a impetração, em síntese, que o paciente está sofrendo constrangimento ilegal diante da impropriedade jurídica da magistrada ao qualificar como estelionato eventual utilização fraudulenta dos benefícios previstos na Lei Rouanet e da autorização para início da instrução processual. 11.

Requereu, liminarmente, o sobrestamento da ação penal n° 0001810- 08.2019.4.03.6181 até o julgamento do presente writ e, no mérito, a confirmação definitiva da ordem para que, adequando-se a capitulação jurídica dos fatos, sejam os autos remetidos ao Juizado Especial Criminal para a continuidade das apurações e análise de eventual prescrição da pretensão punitiva do Estado 2 . 12. Foram prestadas informações pela autoridade impetrada 3 . 13. Em 24.01.2020 o Exmo. Relator julgou prejudicado o pedido liminar sob o argumento de que, “no habeas corpus nº 5000658-16.2020.4.03.0000, impetrado em 1 Id. 123494324 – Págs. 1/5. 2 Id. 122618264 – Págs. 1/12. 3 Id. 123494324 – Pág. 1/5. 4 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região favor do corréu Antônio Carlos Bellini Amorim, liminarmente, determinei a suspensão da ação penal de origem (nº 0001810-08.2019.403.6181), de modo que não subsiste o interesse processual (necessidade) dos impetrantes no que tange à pretensão liminar”.

A Procuradoria Regional da República da 3a Região ou, em seu parecer, pela denegação da ordem 5. 15. A Décima Primeira Turma do Eg. Tribunal Regional Federal da 3a Região, por maioria, concedeu parcialmente a ordem de habeas corpus para reclassificar a conduta imputada ao paciente de estelionato para o crime previsto no art. 40 da Lei Rouanet, a ser processado e julgado perante o Juizado Especial Federal Criminal adjunto à 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP, “assegurando ao paciente, ainda, a possibilidade do reconhecimento da extinção da punibilidade desde que tenha havido o pagamento integral do tributo relativo aos benefícios fiscais supostamente fraudados, devidamente atualizados, com aplicação de juros e multa, o que deverá ser verificado pelo juízo impetrado, na origem, ao qual caberá, ainda, examinar eventual prescrição da pretensão punitiva”. Em consequência, determinou que deverá ser procedida à instrução em relação ao paciente, não se estendendo a decisão para o corréu na ação penal, nos termos do voto do Des. Fed. Relator Nino Toldo, com quem votou o Des. Fed. José Lunardelli, vencido o Des. Fes. Fausto de Sanctis que denegava a ordem. A ementa do aresto vergastado recebeu a seguinte redação 6 : “PENAL. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO BOCA LIVRE. FRAUDE RELACIONADA A BENEFÍCIOS DA LEI ROUANET. IMPUTAÇÃO DE PRÁTICA DO CRIME DE ESTELIONATO QUALIFICADO. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. RECLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA ANTES DA 4 Id. 122776613 – Págs. 1/2. 5 Id. 131636630 – Págs. 1/16. 6 Id. 134031707 – Págs. 1/3. 5 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região PROLAÇÃO DA SENTENÇA A. POSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL CRIMINAL. 1. A imputação feita na denúncia, de prática do crime de estelionato qualificado (CP, art. 171, § 3º) contra a União, não se coaduna aos fatos praticados e, por isso, deve haver a reclassificação jurídica destes. 2.

O estelionato é um crime patrimonial, praticado mediante fraude (“obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio”). Para que se materialize, é necessária a ocorrência da lesão ao patrimônio da vítima em decorrência da fraude (que se dá por indução ou manutenção da vítima em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento). 3. A Lei Rouanet é clara quanto à impossibilidade de recebimento, pelo patrocinador, de qualquer vantagem financeira ou mate rial em decorrência do patrocínio que efetuar (v. art. 23, § 1º). Portanto, é ilícita qualquer contrapartida que tenha sido objeto de contrato entre o grupo intermediador e a patrocinadora para a liberação do patrocínio para o Pronac apresentado. 4. Apesar de o Ministério Público Federal, em diversos momentos da denúncia, ter chamado de “recursos públicos” os aportes feitos pelas empresas patrocinadoras, eles não o são. Somente a partir da dedução do imposto de renda, com a renúncia fiscal, é que os recursos das empresas (patrocínios) passam a ter natureza pública. 5. O grupo intermediador (por qualquer de suas empresas) era autorizado a captar patrocínios para cada Pronac (projeto cultural) que apresentava ao Ministério da Cultura e por ele era aprovado. Uma vez obtido o patrocínio, esse valor deveria ser totalmente aplicado no Pronac para o qual fora autorizada a sua obtenção. Tendo sido desviado para qualquer outra situação (não importa qual), o valor desviado era privado até o momento em que a empresa patrocinadora deduzia do seu imposto de renda o valor aportado. Somente a partir desse momento, ou seja, da diminuição do imposto de renda que deveria ser recolhido é que se pode dizer que há lesão ao patrimônio da União. 6.

A contrapartida, em si mesma, não lesa o patrimônio da União. Se o Grupo Bellini negociou com a patrocinadora um show privado de um artista famoso pelo patrocínio de R$ 150.000,00 e utilizou, para tanto, de Pronac que tinham por objeto a difusão da música instrumental brasileira, por exemplo, esse show, em si mesmo, não lesa o patrimônio da União, já que esse valor (patrocínio) saiu dos cofres da empresa (privado) e não dos cofres da União (público). A lesão ao patrimônio da União somente ocorrerá, repita-se, no momento em que esses R$ 150.000,00 forem deduzidos do imposto de renda devido pela empresa 7. O meio não pode ser posterior ao fim. Se a empresa patrocinadora objetivasse apenas os shows, os eventos e os livros, qual o sentido de patrocinar um projeto cultural, se poderia alcançar esses mesmos objetivos (shows, eventos e livros) diretamente? Nenhum. Em 6 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região diversas situações vistas na Operação Boca Livre, o valor aportado a título de patrocínio era muito superior ao custo de apresentação de um artista para evento privado, de onde se pode supor que, se o objetivo da empresa fosse realmente o show, seria muito mais fácil e mais barato contratar diretamente o artista, por meio de seu agente, do que se valer de um esquema envolvendo desvios de finalidade de Pronac. A conduta das empresas patrocinadoras só se justifica, do ponto de vista lógico, se o que elas objetivavam era valer-se de um futuro benefício fiscal.

A conduta imputada ao paciente não pode ser classificada como estelionato. 8. O acusado defende-se de fatos, e não da capitulação que consta na denúncia ou queixa, e o momento processual adequado para eventual correção da capitulação é o da prolação da sentença, nos termos do art. 383 do Código de Processo Penal. Excepcionalmente, porém, é possível proceder a tal correção em momento diverso, inclusive o de recebimento da denúncia, nas hipóteses de erro flagrante, alteração de competência absoluta e concessão de benefícios processuais ao acusado, com a aplicação dos institutos benéficos previstos na legislação, em especial a transação penal e a suspensão condicional do processo. 9. Se de antemão o magistrado percebe, no início do processo, que o fato se enquadra em tipo penal que admite tais medidas, não faz sentido processar integralmente a ação penal (com apresentação de defesa pelo acusado, realização de instrução e oferecimento de alegações finais pelas partes) para, somente ao final, no momento de prolação da sentença, determinar a conversão do julgamento em diligência para, então, oferecê-las. Assim, embora o momento adequado para a reclassificação jurídica da conduta imputada seja, em regra, o da prolação da sentença, em determinadas situações o juízo é autorizado a assim proceder em momento anterior, inclusive o de recebimento da denúncia, ante a desnecessidade de instrução probatória para tanto. 10.

No caso, há um aparente conflito de normas, pois o MPF imputa ao paciente a prática do delito de estelionato majorado (CP, art. 171, § 3º), enquanto os impetrantes defendem que a conduta do paciente se amolda, em tese, ao crime do art. 40 da Lei Rouanet. 11. Pelo exame dos autos, a intenção do paciente (sem estabelecer qualquer juízo de valor prévio acerca da sua eventual ilicitude) era valer-se do benefício fiscal decorrente da Lei Rouanet, qual seja, a dedução do imposto de renda do valor aplicado nos projetos culturais alegadamente fraudados. Assim, esse conflito aparente de normas deve ser resolvido pelo princípio da especialidade (lex specialis derogat generali), pois, no caso, o suposto uso fraudule nto dos benefícios da Lei Rouanet é incriminado pelo art. 40 dessa Lei, que, por isso, constitui norma especial em relação ao estelionato e, ainda, aos tipos descritos na Lei nº 8.137/90. 12. É certo também que tal fato constitui especial modalidade de crime contra a ordem tributária, de sorte que o pagamento integral do 7 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região valor do tributo relativo ao benefício supostamente fraudado, devidamente atualizado, com aplicação de juros e multa, constitui causa extintiva da punibilidade.

Contudo, não há como reconhecer, neste writ, a extinção da punibilidade do paciente pelo pagamento integral do tributo, haja vista que tal situação depende de manifestação específica da autoridade fazendária, não presente nos autos, a ser aferida na origem. 13. Em relação à prescrição da pretensão punitiva, não é o caso de se examinar essa questão no âmbito deste habeas corpus, até porque isso demandaria examinar o momento em que teria ocorrido a constituição definitiva do crédito tributário, já que o crime do art. 40 da Lei Rouanet é material (obter redução do imposto de renda) e, nesse caso, teria que ser observada a Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal. 14. Considerando que a pena máxima do crime previsto no art. 40 da Lei Rouanet não é superior a dois anos de reclusão, a competência para o exame da suficiência do pagamento realizado, bem como de eventual prescrição da pretensão punitiva, é do Juizado Especial Federal Criminal adjunto ao juízo de origem. 15. Ordem parcialmente concedida para reclassificar a conduta imputada ao paciente de estelionato para o crime previsto no art. 40 da Lei Rouanet.

16. Em face desse r. julgado o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL interpõe o presente Recurso Especial a fim de preservar a correta aplicação do art. 171, § 3°, do Código Penal, bem como do art. 40 da Lei n° 8.31391 (denominada de Lei Rouanet). – II – PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE RECURSAL II.1 – Cabimento 17. O art. 105, inciso III, alínea “a”, da CF possibilita a interposição de recurso especial quando o acórdão recorrido “contrariar tratado ou lei federal, ou negar lhes vigência”. 8 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região 18. A decisão ora recorrida foi proferida em última instância no âmbito do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, comportando qualquer outro recurso de caráter ordinário. 19. Assim, resta preenchido o requisito para o manejo do recurso especial disposto no art. 105, inciso III, alínea “a”, da CF/88, uma vez que, ao conceder parcialmente a ordem de habeas corpus para reclassificar a conduta prevista no art. 171, § 3°, do Código Penal para aquela prevista no art. 40 da Lei n° 8.31391, a C. Décima Primeira Turma do Egrégio Regional Federal da 3a Região violou os dispositivos infraconstitucionais apontados. II.2 – Prequestionamento 20. Na hipótese vertente o fundamento da interposição do presente Recurso Especial é a violação aos art. 171, § 3°, do Código Penal, bem como do art. 40 da Lei n° 8.313/91, matérias devidamente prequestionadas no julgado impugnado. 21.

Confira-se excertos do julgado recorrido que versam sobre tais questões 7 : Voto condutor: “(…) Quanto à imputação por estelionato, é preciso examinar, antes de mais nada, o tipo penal invocado pelo MPF: Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa. […] § 3º A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência. Pois bem. Em primeiro lugar é preciso ter em mente que o estelionato é um crime contra o patrimônio e, portanto, na lição de Heleno Cláudio Fragoso, “[o] interesse juridicamente tutelado neste crime é a inviolabilidade do patrimônio, com especial referências ações praticadas com engano ou fraude. De forma secundária é 7 Id. 136606630. 9 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região também tutelada a segurança, a fidelidade e a veracidade nos negócios jurídicos patrimoniais (…)” (Lições de direito penal, parte especial: arts. 121 a 212 do CP, 7. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 382). Disso decorre que se trata de crime material, que só se perfaz com a obtenção da vantagem ilícita patrimonial, que é o fim visado pelo agente.

No caso dos patrocínios feitos pelas empresas que foram alvo da Operação Boca Livre, qual seria o dano patrimonial à União por elas objetivado, por intermédio dos seus representantes? O MPF entendeu, na denúncia, que o objetivo visado eram as contrapartidas ilícitas (e ventos corporativos promovidos pelo Grupo Bellini em benefício das próprias empresas patrocinadoras), que provinham do desvio dos valores aportados a título de patrocínio, os quais o órgão acusatório entendeu serem recursos públicos. Esse raciocínio foi acolhido pela autoridade judicial impetrada, conforme se depreende do seguinte trecho das informações, que reproduz o que constou no recebimento da denúncia por estelionato: (…) Isso porque, como dito acima, o estelionato é um crime patrimonial, praticado mediante fraude (“obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio”). Para que se materialize, é necessária a ocorrência da lesão ao patrimônio da vítima em decorrência da fraude (que se dá por indução ou manutenção da vítima em erro, mediante artifício, ardil o u qualquer outro meio fraudulento).

O núcleo do tipo é o verbo “obter” (que significa conseguir, lograr, ganhar) e compõe-se com a expressão “para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. Assim, obter significa conseguir uma vantagem (lucro ou ganho) indevida em razão da indução ou manutenção da vítima em erro (engano) nela provocado, que é a finalidade do agente, sem que ela (vítima) note que está sendo lesada. Para que exista o crime de estelionato, são necessários: i) emprego de fraude; ii) situação de erro à qual a vítima foi induzida ou nela foi mantida; iii) obtenção da vantagem ilícita; iv) prejuízo da vítima. No caso das empresas patrocinadora s investigadas no âmbito da Operação Boca Livre, sem maiores digressões quanto ao mérito da imputação, qual seria a lesão ao patrimônio da União? A Lei Rouanet é clara quanto à impossibilidade de recebimento, pelo patrocinador, de qualquer vantagem financeira ou material em decorrência do patrocínio que efetuar (v. art. 23, § 1º). Portanto, é ilícita qualquer contrapartida que tenha sido objeto de contrato entre o Grupo Bellini e a patrocinadora para a liberação do patrocínio para o Pronac apresentado.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região No entanto, essas contrapartidas constituiriam prejuízo para o patrimônio da União? Apesar de o MPF, em diversos momentos da denúncia, ter chamado de “recursos públicos” os aporte s feitos pelas empresas patrocinadoras, eles não o são. Somente a partir da dedução do imposto de renda, com a renúncia fiscal, é que os recursos das empresas (patrocínios) passam a ter natureza pública. Até então, sua natureza é privada. Explico. O Grupo Bellini (por qualquer de suas empresas) era autorizado a captar patrocínios para cada Pronac (projeto cultural) que apresentava ao MinC e por ele era aprovado. Uma vez obtido o patrocínio, esse valor deveria ser totalmente aplicado no Pronac para o qual fora autorizada a sua obtenção. Tendo sido desviado para qualquer outra situação (não importa qual), o valor desviado era privado até o momento em que a empresa patrocinadora deduzia do seu imposto de renda o valor aportado. Somente a partir desse momento, ou seja, da diminuição do imposto de renda que deveria ser recolhido é que s e pode dizer que há lesão ao patrimônio da União. A contrapartida, em si mesma, não lesa o patrimônio da União. Se o Grupo Bellini negociou com a patrocinadora um show privado de um artista famoso pelo patrocínio de R$ 150.000,00 e utilizou, para tanto, de Pronac que tinha por objeto a difusão da música instrumental brasileira, por exemplo, esse show, em si mesmo, não lesa o patrimônio da União, já que esse valor (patrocínio) saiu dos cofres da empresa (privado) e não dos cofres da União (público). A lesão ao patrimônio da União somente ocorrerá, repita-se, no momento em que esses R$ 150.000,00 forem deduzidos do imposto de renda devido pela empresa.

De outro lado, o fundamento da autoridade impetrada no sentido de que ‘[a] dedução do tributo seria o meio (fraudulento) empregado para a obtenção da vantagem ilícita consistente nas contrapartidas ilegais (shows, eventos, livros) obtidas pelas patrocinadoras’ não é lógica. Ora, o meio não pode ser posterior ao fim. Se a empresa patrocinadora objetivasse apenas os shows, os eventos e os livros, qual o sentido de patrocinar um projeto cultural, se poderia alcançar esses mesmos objetivos (shows, eventos e livros) diretamente? Nenhum. Observe-se que, em diversas situações vistas na Operação Boca Livre, o valor aportado a título de patrocínio era muito superior ao custo de apresentação de um artista para evento privado, de onde se pode supor que, se o objetivo da empresa fosse realmente o show, seria muito mais fácil e mais barato contratar diretamente o artista, por meio de seu agente, do que se valer de um esquema envolvendo desvios de finalidade de Pronac.

A conduta das empresas patrocinadoras só se justifica, do ponto de vista lógico, se o que elas objetivavam era valer-se de um futuro benefício fiscal. 11 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região (…) O Grupo Bellini, em princípio, valendo-se de seus projetos culturais aprovados pelo MinC, oferecia às empresas patrocinadoras contrapartidas para que estas fizessem aportes para esses projetos, em descumprimento à Lei Rouanet. Aspectos mais específicos dessas condutas, no entanto, escapam ao restrito campo de conhecimento deste habeas corpus. Aqui, o que importa destacar é que a conduta imputada ao paciente não pode ser classificada como estelionato. Assiste razão aos impetrantes no que tange à tipificação da conduta a ele imputada. Como já disse em outra oportunidade (no HC acima indicado), o acusado defende-se de fatos, e não da capitulação que consta na denúncia ou queixa, e o momento processual adequado para eventual correção da capitulação é o da prolação da sentença, nos termos do art. 383 do Código de Processo Penal. Excepcionalmente, porém, é possível proceder a tal correção em momento diverso, inclusive o de recebimento da denúncia, nas hipóteses de erro flagrante, alteração de competência absoluta e concessão de benefícios processuais ao acusado, com a aplicação dos institutos benéficos previstos na legislação, em especial a transação penal e a suspensão condicional do processo.

De fato, se de antemão o magistrado percebe, no início do processo, que o fato se enquadra em tipo penal que admite tais medidas, não faz sentido processar integralmente a ação penal (com apresentação de defesa pelo acusado, realização de instrução e oferecimento de alegações finais pelas partes) para, somente ao final, no momento de prolação da sentença, determinar a conversão do julgamento em diligência para, então, oferecê-las. Assim, embora o momento adequado para a reclassificação jurídica da conduta imputada seja, em regra, o da prolação da sentença, em determinadas situações o juízo é autorizado a assim proceder em momento anterior, inclusive o de recebimento da denúncia, ante a desnecessidade de instrução probatória para tanto. É esse exatamente o caso dos autos. Há um aparente conflito de normas, pois o MPF imputa ao paciente a prática do delito de estelionato majorado (CP, art. 171, § 3º), enquanto os impetrantes defendem que a conduta do paciente se amolda, e m tese, ao crime do art. 40 da Lei Rouanet, que assim dispõe: Art. 40. Constitui crime, punível com reclusão de dois a seis meses e multa de vinte por cento do valor do projeto, obter redução do imposto de renda utilizando-se fraudulentamente de qualquer benefício desta Lei. § 1 º No caso de pessoa jurídica respondem pelo crime o acionista controlador e os administradores que para ele tenham concorrido 12 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região § 2º Na mesma pena incorre aquele que, recebendo recursos, bens ou valores em função desta Lei, deixa de promover, sem justa causa, atividade cultural objeto do incentivo Pelo que acima foi dito e pelo exame dos autos, a intenção do paciente (sem estabelecer qualquer juízo de valor prévio acerca da sua eventual ilicitude) era valer-se do benefício fiscal decorrente da Lei Rouanet, qual seja, a dedução do imposto de renda do valor aplicado nos projetos culturais alegadamente fraudados.

Assim, esse conflito aparente de normas deve ser resolvido pelo princípio da especialidade ( lex specialis derogat generali ), pois, no caso, o suposto uso fraudulento dos benefícios da Lei Rouanet é incriminado pelo art. 40 dessa Lei, que, por isso, constitui norma especial em relação ao estelionato e, ainda, aos tipos descritos na Lei nº 8.137/90. Dito isso, é certo também que tal fato constitui especial modalidade de crime contra a ordem tributária, de sorte que o pagamento integral do valor do tributo relativo ao benefício supostamente fraudado, devidamente atualizado, com aplicação de juros e multa, constitui causa extintiva da punibilidade. Também em relação à prescrição da pretensão punitiva, não é ; o caso de se examinar essa questão no âmbito deste habeas corpus, até porque isso demandaria examinar o momento em que teria ocorrido a constituição definitiva do crédito tributário, já que o crime do art. 40 da Lei Rouanet é material (obter redução do imposto de renda) e, nesse caso, teria que ser observada a Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal. Por fim, considerando que a pena máxima do crime previsto no art. 40 da Lei Rouanet não é superior a dois anos de reclusão, a competência para o exame da suficiência do pagamento realizado, bem como de eventual prescrição da pretensão punitiva, é do Juizado Especial Federal Criminal adjunto à 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP. Em consequência, não deverá ser procedida à instrução em relação ao paciente” – g.n. Voto Vencido: (…) Como se nota, no delito previsto no art. 40 da Lei n° 8.313/1991, o bem jurídico violado é a arrecadação de tributos, na medida em que se busca suprimir imposto de renda mediante a obtenção do benefício de forma fraudulenta.

O objetivo da conduta é obter a redução do tributo e o meio utilizado para alcançá-lo é a obtenção do benefício mediante fraude. 13 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região De outro lado, o crime de estelionato é mais amplo e abarca a conduta daquele que obtém para si ou para terceiro qualquer vantagem em prejuízo alheio, induzindo alguém em erro mediante fraude. Restou apurado pela leitura da denúncia (ID 136003327) que se imputa ao paciente o suposto cometimento de crime de estelionato, relativo ao aporte financeiro realizado no Pronac nº 073577, intitulado Projeto Instrumental Itinerante – Solo de Violão Toquinho, voltado à realização de seis espetáculos de música instrumental homenageando os 40 anos de carreira de Toquinho, em diversas cidades pelo Brasil, no valor de R$150.000,00 (cento e cinquenta mil reais). (…) Da impossibilidade de desclassificação do delito tipificado no art. 171, § 3°, do Código Penal para o delito previsto no art. 40, inciso I, da Lei n° 8.313/91 (Lei Rouanet). A magistrada a quo rechaçou o pleito defensivo de desclassificação da conduta tipificada no art. 171, § 3°, do Código Penal para aquela prevista no art. 40 da Lei n° 8.313/91 (Lei Rouanet), por entender que…. a finalidade da conduta, tal como descrita na denúncia, não era a dedução do tributo. A dedução do tributo era o meio (fraudulento) empregado para a obtenção da vantagem ilícita, consistentes nas contrapartidas ilegais (shows, eventos, livros) obtidos pelas patrocinadoras. In casu, o paciente, Diretor-Presidente do BANCO CONCÓRDIA S/A CCVMCC teria se utilizado dos recursos, em proveito da própria empresa, como se recursos privados fossem.

Assim, a tipificação dada na denúncia vai muito além da prática de mera sonegação fiscal por parte da patrocinadora ou da inexecução total ou parcial dos projetos culturais aprovados, já que tal empresa teria sido, também e diretamente, beneficiada com a realização de show exclusivo da empresa, consistente em apresentação do cantor e compositor João Bosco, para 60 convidados, no dia 01.10.2008, por meio do desvio de recursos do citado Pronac. Ao se associar dolosa e criminalmente aos membros do Grupo Bellini Cultural, a patrocinadora, por meio do paciente, que seria a representante legal, à época, teria transformado um projeto originariamente cultural, num projeto corporativo, com fins unicamente promocionais, em completo desvirtuamento dos propósitos da Lei Rouanet. Por esta razão, entende-se que o ilícito praticado consiste no estelionato contra a União, em razão do específico auferimento, pela empresa patrocinadora, de vantagens ilícitas em detrimento da execução de um projeto cultural, além de usufruir da própria isenção fiscal sem causa legítima que a justificasse.

A fraude consistiu em obter vantagem indevida sob a justificativa de realizar o incentivo à cultura, sabendo-se que tal evento não seria realizado, mas sim, o evento privado. Diante desse contexto, conclui-se que o que se pretendia era utilizar o dinheiro destinado ao incentivo cultural para fins privados, 14 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região ou seja, a elaboração de produto em caráter nitidamente promocional e personalizado, com especificações que atendiam ao interesse da empresa. Assim, entende-se pela impossibilidade da desclassificação do delito tipificado no art. 171, § 3°, do Código Penal para o delito previsto no art. 40, inciso I, da Lei n° 8.313/91 (Lei Rouanet)” – destaques no original. 22. Desta feita, encontra-se preenchido esse requisito específico de admissibilidade recursal, na forma do Enunciado n° 211 desse E. Superior Tribunal de Justiça (Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo). II.3 – Tempestividade Recursal 23. O presente recurso tempestivo, pois interposto dentro do prazo de 15 (quinze) dias após a intimação do Ministério Público Federal, que ocorreu na data de 30 de julho de 2020. II.4 – Não incidência do Enunciado da Súmula n° 7 do STJ 24. O delineamento fático probatório do caso já está devidamente estabilizado/fixado nos autos, não restando qualquer dúvida acerca de seus contornos. 25.

Com efeito, o que se busca demonstrar é a inviabilidade jurídica da tese decisória recorrida a partir da correta interpretação e aplicação de dispositivos federais (art. 171, § 3°, do Código Penal, e art. 40 da Lei n° 8.313/91). 15 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região 26. Portanto, trata-se de questão meramente jurídica, que independe de qualquer prova ou de qualquer discussão acerca dos fatos efetivamente provados, o que torna inaplicável o óbice erigido no verbete. – III – MÉRITO RECURSAL III.1–) Da violação a dispositivos infraconstitucionais: art. 171, § 3°, do Código Penal e art. 40 da Lei n° 8.313/91) 27. Dispõe o art. 171, § 3°, do Código Penal: “Estelionato Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis. (…) § 3º – A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência. O art. 40 da Lei n° 8.313/91 (Lei Rouanet), por sua vez, estabelece que: “Art. 40. Constitui crime, punível com reclusão de dois a seis meses e multa de vinte por cento do valor do projeto, obter redução do imposto de renda utilizando-se fraudulentamente de qualquer benefício desta Lei. § 1 o No caso de pessoa jurídica respondem pelo crime o acionista controlador e os administradores que para ele tenham concorrido. § 2 o Na mesma pena incorre aquele que, recebendo recursos, bens ou valores em função desta Lei, deixa de promover, sem justa causa, atividade cultural objeto do incentivo”.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região 29. Como se nota, no delito previsto no art. 40 da Lei n° 8.313/91, o bem jurídico violado é a arrecadação de tributos, na medida em que se busca suprimir impostos me diante a obtenção do benefício (redução de tributos devidos) de forma fraudulenta. O objetivo da conduta é obter a redução do tributo e o meio utilizado para alcançá-lo é a obtenção do benefício mediante fraude. A fraude aqui está na ocultação da inexistência de qualquer atividade de execução do projeto cultural que lastreia o benefício tributário, ou a execução fraudulenta relacionada com a execução fraudada do projeto, mas em situação em que o único benefício obtido pela empresa beneficiária é a redução do tributo. 30. De outro lado, o crime de estelionato é mais amplo e abarca a conduta daquele que obtém para si ou para terceiro qualquer vantagem em prejuízo alheio, induzindo alguém em erro mediante fraude. Exatamente o caso do s autos. 31. As denúncias ofertadas no âmbito da “Operação Boca Livre” encontram-se inseridas dentro de um contexto de desvirtuamento dos objetivos da Lei Rouanet, os quais, inobstante a regular captação de recursos visando a promoção de projetos culturais em nível nacional, deixaram de ser atingidos por conta dos desvios de recursos públicos promovidos por alguns agentes – em conluio com integrantes do Grupo Bellini Cultural – e de outros representantes, diretores e/ou gerentes de mais de uma dezena de empresas patrocinadoras. 32. A Lei 8.313/1991 (Lei Rouanet), ao instituir o PRONAC – Programa Nacional de Apoio à Cultura, teve como escopo a criação de mecanismos para facilitar a arrecadação de recursos para a promoção de projetos culturais que difundissem a cultura brasileira, franqueando a toda a sociedade o livre acesso às fontes de cultura e o pleno exercício dos direitos culturais, em cumprimento do disposto no artigo 215 da Constituição Federal. 33.

Tal objetivo, porém, restou inteiramente frustrado. 34. As provas colhidas ao longo das investigações demonstraram a realização de diversas fraudes contra a União no que se refere à inexecução – total ou parcial – de projetos 17 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região culturais aprovados pelo Ministério da Cultura sob a égide da Lei nº 8.313/91 (Lei Rouanet), redundando em benefício tributário e vantagens econômicas ilícitas em prol de empresas patrocinadoras. 35. Os projetos (PRONAC’s) haviam sido propostos pelo Grupo Bellini (por meio de suas empresas) e aprovados pelo Ministério da Cultura, a partir da captação de milhões em a portes de empresas, que seriam empregados, a título de patrocínio, nesses mesmos projetos. 36. Como incentivo ao empreendedorismo cultural, a Lei nº 8.313/91 (Lei Rouanet) previu a concessão de dedução de até 4% (quatro por cento) do imposto de renda devido pela pessoa jurídica que aportar recursos em projetos culturais por meio dela 8 . O benefício advindo desses aportes se traduz na vinculação gratuita da marca da instituição (empresa) ao projeto cultural em que a patrocinadora investiu, sendo que os recursos públicos que deveriam ser normalmente por elas recolhidos, na forma de tributo, são, na verdade, revertidos na execução desse projeto cultural.

Conforme artigo 18 da Lei nº 8.313/91: “Com o objetivo de incentivar as atividades culturais, a União facultará às pessoas físicas ou jurídicas à aplicação de parcelas do Imposto sobre a Renda, a título de doações ou patrocínios, tanto no apoio direto a projetos culturais apresentados por pessoas físicas ou por pessoas jurídicas de natureza cultural, como através de contribuições ao FNC, nos termos do art. 5 o , inciso II, desta Lei, desde que os projetos atendam aos critérios estabelecidos no art. 1 o desta Lei”. Conforme Art. 26 da Lei nº 8.313/91: “O doador ou patrocinador poderá deduzir do imposto devido na declaração do Imposto sobre a Renda os valores efetivamente contribuídos em favor de projetos culturais aprovados de acordo com os dispositivos desta Lei, tendo como base os seguintes percentuais: (…) II – no caso das pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, quarenta por cento das doações e trinta por cento dos patrocínios”. 9 Conforme art. 3 1 do Decreto nº 5.761/06, que regulamenta a Lei nº 8.313/91: “Não constitui vantagem financeira ou material a destinação ao patrocinador de até dez por cento dos produtos resultantes do programa, projeto ou ação cultural, com a finalidade de distribuição gratuita promocional, consoante plano de distribuição a ser apresentado quando da inscrição do programa, projeto ou ação, desde que previamente autorizado pelo Ministério da Cultura. Parágrafo único. No caso de haver mais de um patrocinador, cada um poderá receber produtos resultantes do projeto em quantidade proporcional ao investimento efetuado, respeitado o limite de dez por cento para o conjunto de incentivadores”. 18 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região 37.

No entanto, as investigações apontara m que os aportes supostamente feitos por tais empresas – considerados como recursos públicos federais, porque captados por meio do incentivo fiscal que a Lei prevê, para que fossem destinados a projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura – não foram contabilizados a favor do custeio e realização desses PRONAC’s, mas sim foram objeto de comprovados desvios e fraudes praticados, na execução dos projetos, quer pela organização criminosa liderada pelo Grupo Bellini Cultural, quer por dirigentes, prepostos, gerentes e/ou representantes de dezenas de empresas patrocinadoras. 38. Constatou-se, ainda, por meio de documentos intitulados “Eventos Culturais 2002 a 2014” e “Eventos de Relacionamento Lei Rouanet Bellini Cultural”, que eventos meramente corporativos promovidos pelos produtores ligados ao Grupo Bellini Cultural, desde o início de 1998 até 29 de junho de 2016 (data da deflagração da Operação “Boca Livre”), estavam sendo realizados por meio de fraudes, com desvio de recursos públicos, em benefício de seus componentes, bem como para favorecer grandes empresas que seriam as “patrocinadoras parceiras” dessas fraudes. 39. Além disso, a partir das buscas e apreensões e interceptações telefônicas e telemáticas realizadas, foram detectados dezenas de projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura que não haviam sido executados na sua integralidade, ou não executados de forma alguma, em razão dos desvios dos recursos que deveriam ter sido neles aportados.
Estes desvios foram consumados, não apenas em favor dos próprios integrantes do Grupo Bellini Cultural, mas, em especial, para a promoção de eventos corporativos no interesse das empresas nominadas “patrocinador; (autoras desses aportes). Não se trata, nos autos, de mera inexecução que só gerou benefícios tributários, mas de inexecução que, além de benefícios tributários, também gerou benefícios e vantagens econômicas ou patrimoniais ilícitas. 40. Assim, os recursos públicos federais que deveriam ter sido destinados aos projetos culturais (PRONAC’s) e que não o foram, além de terem sido apropriados pelos integrantes do Grupo Bellini Cultural – fato este já denunciado na Ação Penal nº 0001071- 40.2016.403.6181 – foram, também apropriados pelas próprias empresas patrocinadoras, na 19 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região forma de shows, eventos e edição de livros institucionais para promoção de sua marca corporativa. 41. Prova irrefutável de que os projetos não foram realizados provém, em especial, de que diversas prestações de contas feitas pelo Grupo Bellini Cultural foram reprovadas pelo Ministério da Cultura, segundo informações constantes da referida Ação Penal. 42. Os prejuízos daí advindos – dentro do que pôde ser comprovado – alcançou a ordem dos R$ 41.000.000,00 (quarenta e um milhões de reais), na primeira fase da Operação, sendo certo que, na segunda fase, foram identificados mais de R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais) em desvios de recursos públicos. 43. Assim, não há como sustentar a desclassificação do delito tipificado no art. 171, § 3°, do Código Penal para o delito previsto no art. 40, inciso I, da Lei n° 8.313/91 (Lei Rouanet).

As provas reunidas durante as buscas e apreensão junto a sedes de diversas patrocinadoras e condensadas nos Relatórios de Análise produzidos durante as investigações chamam a atenção para o fato de que o interesse que movia essas incentivadoras – com relação aos projetos culturais por elas incentivados, constituía-se na utilização indevida de recursos da Lei Rouanet para fins ilícitos de atendimento a interesses privados, como marketing corporativo ou eventos institucionais, que não haviam sido contemplados no escopo legal, nem tampouco no objeto do projeto aprovado pelo Ministério da Cultura. 45. As vantagens eram auferidas sem prejuízo da isenção fiscal a que, nos termos da Lei Rouanet, tinham direito pelo aporte que realizavam com suposto direcionamento à realização de projetos culturais, fato este que potencializa, tanto mais, o pacote de vantagens ilícitas por elas perseguido. É que, neste caso, a União foi usada, não apenas como promotora de uma isenção fiscal sem causa, mas também seus recursos públicos foram carreados para o financiamento de festas ou produtos corporativos, sem quaisquer custos à empresa dita “patrocinadora” ou “incentivadora”. 20 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região 46. Em verdade, os departamentos de marketing das patrocinadoras utilizavam-se dos recursos objeto dos aportes, em favor de suas respectivas empresas, como se recursos privados fossem. Inclusive, muitos dos contratos de patrocínio apreendidos continham cláusulas expressas de contrapartidas ilícitas (e.g, apoio e fomento a determinado projeto cultural mediante a realização de shows, eventos, publicações de livros, marketing corporativo), a corroborar o fato de qu e, sem e sta condição, o patrocínio sequer nasceria.

Assim, a tipificação dada na denúncia vai muito além da prática de mera sonegação fiscal por parte das patrocinadoras ou da inexecução total ou parcial dos projetos culturais aprovados, já que tais empresas foram, também e diretamente, beneficiadas com um evento corporativo (espetáculos musicais, teatrais ou de humor, exclusivos para seus convidados/clientes) ou com um produto (livros institucionais), sem qualquer custo financeiro, ou com custos parciais (deduzidos aqueles eventuais e minimamente aportados no projeto cultural a que haviam se proposto). 10 48. Ao assim agirem, as patrocinadoras, juntamente com os membros do Grupo Bellini, lograram transformar um projeto originariamente cultural (que poderia contar com a promoção de sua marca) num projeto corporativo, com fins unicamente promocionais, em completo desvirtuamento dos propósitos da Lei Rouanet. 11 49. Por esta razão, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL defende que o ilícito praticado consiste no estelionato contra a União, em razão do específico auferimento, pelas 10 Dentro do contexto de tais fraudes, apurou-se, no âmbito da Ação Penal n. 0001071-40.2016.403.6181, ao invés da produção do projeto cultural, tal como inicialmente concebido, a partir da verba restante dessa contrapartida ‘institucional’, a própria empresa ou o Grupo Bellini realizava um simulacro de apresentação teatral ou musical para um público mínimo, sem condições econômico-financeiras de pagar por um espetáculo desta natureza., gerando a falsa aparência da execução daquele PRONAC para o qual a empresa patrocinadora havia aportado recursos.

Tais apresentações, na sua essência e em seu objeto, eram realizadas com vistas a fazer o Ministério da Cultura incidir em erro, na crença de que o projeto cultural que inicialmente aprovara, havia se realizado. 11 Desse proveito ilegítimo, lucrou, também e altamente, o Grupo Bellini Cultural, ao usufruir do desvio desses recursos. 21 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região empresas patrocinadoras, de vantagens ilícitas em detrimento da execução de projeto cultural, além de usufruírem da própria isenção fiscal sem causa legítima que a justificasse. 50. Com efeito, os desvios de recursos públicos foram praticados durante duas décadas, mediante a apresentação de documentos falsos perante o Ministério da Cultura, para o fim de atestar a suposta execução de projetos culturais. Em adição, documentos, fotos de shows e de outros espetáculos que haviam sido realizados em benefício exclusivo do patrocinador eram apresentados ao Ministério da Cultura. Desta forma, dava-se a prática do estelionato pelas mãos de integrantes do Grupo Bellini Cultural e por meio das patrocinadoras, cujos representantes foram agentes ativos na construção e manutenção dessa fraude. 51. As empresas patrocinadoras demandavam a criação de projetos que atendessem aos seus interesses corporativos e os produtores culturais os realizavam sob medida, com fraudado “viés social”. Mesmo em tais casos, em que alguns eventos contaram com um “viés social”, tendo alcançado um público sem condições econômico-financeiras, o projeto cultural aprovado pelo Ministério da Cultura continuou não sendo executado, devido ao desvio de recursos para os eventos ou produtos corporativos.

Em poucas oportunidades, era realizado parcialmente pela patrocinadora, para um público incipiente, ou efetivamente forjado pelo Grupo Bellini Cultural, com o emprego de fotos e cenários copiados ou repetidos dos eventos culturais precedentes), mas sem o conteúdo identificado no objeto do PRONAC correspondente. 52. Na prática, ocorria uma inversão de valores quanto aos objetivos “culturais” almejados: o verdadeiro e principal projeto “cultural” a ser executado pelo Grupo Bellini Cultural era aquele determinado pelo patrocinador, sendo fraudada a própria execução do projeto cultural original e oficialmente aprovado pelo Ministério da Cultura. 53. Diante desse contexto, conclui-se que o que se pretendia desde o início era utilizar o dinheiro destinado ao incentivo cultural para fins privados, ou seja, a elaboração de produto em caráter nitidamente promocional e personalizado, com especificações que atendiam ao interesse da empresa. 22 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região 54. A fraude consistiu justamente em obter vantagem indevida sob a justificativa de realizar o incentivo à cultura, sabendo-se desde sempre que o objeto do projeto cultural aprovado não seria realizado, mas sim produto de caráter corporativo.

Ressalta-se que o tipo penal da Lei Rouanet não abrange as situações apontadas; o crime previsto no art. 40 da Lei n° 8.313/91 pune aqueles casos em que houve a intenção de obter a redução do imposto de renda mediante fraude na execução e/ou realização do evento. Como bem asseverou a magistrada de piso na decisão que analisou o recebimento da denúncia: “De outra parte, o tipo penal da Lei Rouanet não tem a finalidade de prevenir tais situações, mas sim àquelas que decorram de fraudes na execução e/ou realização do evento. Tanto assim, que a sanção penal é proporcional a esta conduta, vinculando a pena de multa a um percentual do valor do projeto. A título exemplificativo, na hipótese de haver inconsistências na prestação de contas, que levassem à redução do imposto de renda. Anoto ainda, que o tipo penal previsto no artigo 40 da Lei Rouanet revela indubitavelmente a intenção de obter a redução tributária, sendo este o motivo pelo qual a respeitável decisão do Egrégio Tribunal Regional Federal concluiu que se trataria de um delito tributário. Contudo, os documentos colacionados aos autos não apontam esta finalidade como o principal objetivo das condutas. Não houve aqui uma fraude tributária.

Ao contrário, todas as condutas se voltam para a realização de um evento que não é aquele efetivamente descrito nos correios eletrônicos de fls. 17/18, sendo, impossível, portanto, que as patrocinadoras não soubessem da fraude praticada já que em tais documentos havia menção expressa ao PRONAC aprovado (“Projeto Instrumental Itinerante – Solo de violão Toquinho”), quando sempre se soube que seria o Show do cantor João Bosco para sessenta convidados no Baretto em São Paulo, no dia 01 de outubro de 2008. Observo, nesse passo, que o benefício fiscal era efeito secundário da prática delitiva, cuja finalidade mais importante era a realização de eventos privados com recursos que deveriam ser destinados a fomentar a cultura. Saliente-se que as isenções tributárias somente seriam usufruídas pela empresa patrocinadora após as realizações dos supostos projetos culturais, eis que apenas em momento ulterior, quando da apuração do montante a pagar e respectivo recolhimento do imposto de renda, haveria a dedução do tributo devido.

Desse modo, há que se concluir que a empresa patrocinadora teria total controle sobre os projetos culturais por ela incentivados, até porque a fruição da isenção tributária decorrente do aporte financeiro destinado à realização deste projeto cultural somente ocorreria em momento posterior. Logo, a utilização ou não dos benefícios fiscais decorrentes 23 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região dos aportes realizados, por se tratarem de efeito secundário do tipo penal ora imputado, não afasta a tipicidade da conduta imputada aos denunciados, uma vez que já obtida vantagem indevida, qual seja, a realização de evento privado. Observe-se que a prestação de informação falsa ou inexata foi realizada perante o Ministério da Cultura, em momento anterior à percepção da isenção fiscal decorrente, seja quando da propositura do projeto, seja quando de sua execução, seja ainda quando da prestação de contas, não sendo, portanto, o meio utilizado para a redução do pagamento do tributo, mas sim uma de suas consequências. Nesse sentido, mais do que o critério da especialidade, há que se atentar para o lapso temporal das condutas praticadas e para os documentos dos autos que revelam a intenção dos agentes, ainda que se trate de avaliação preliminar, como a realizada neste momento.

A propósito, registre-se não se tratar de evento nessa seara criminal, sendo a intenção do agente imprescindível para identificar, por exemplo, a existência de lesão corporal ou tentativa de homicídio nos crimes contra a pessoa, havendo reflexos importantes na determinação da competência e no rito processual adotado. O objetivo que se pretendia alcançar com a prática delituosa é, pois, fundamental para esclarecer o tipo penal envolvido na causa. E considerando todos esses elementos, entendo que as condutas narradas na denúncia trazem mais do que mera redução de imposto de renda a partir de um meio fraudulento. Mais que isto, revelam que a fraude empregada teve a finalidade de induzir o Ministério da Cultura em erro para permitir a obtenção de vantagem indevida – consistente em utilização ilícita de recursos destinados à realização de projetos culturais para eventos privados dos e ações de marketing corporativo, além do benefício tributário a ser usufruído posteriormente” – g.n. 56. A qualificação do crime tipificado no artigo 40 da Lei Rouanet como delito tributário é corolário de que o dever legal dolosamente violado com a conduta criminosa se insere na relação jurídico-tributária travada entre a União e a empresa patrocinadora.

As circunstâncias do caso concreto demonstram que o dever jurídico violado com a conduta criminosa foi a fraude na relação jurídico-tributária e na relação jurídico-administrativa de fomento cultural, que se estruturava ao redor da aprovação e execução regular do projeto cultural. III.2–) Inaplicabilidade do princípio da especialidade 24 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da Re pública – 3ª Região 58. Não há que se cogitar da singela ocorrência de conflito aparente de normas, a ser resolvido pelo princípio da especialidade. 59. Isto porque, entende-se como lei especial aquela que contém todos os elementos da norma geral, acrescida de outros que a tornam distinta (chamados de especializantes). Em outros termos, o tipo especial acrescenta elementos à norma geral, preenche integralmente o tipo geral, com a adição de elementos particulares. 60. A propósito do tema, destacam-se os ensinamentos de Rogério Greco 12: “Pelo princípio da especialidade, a norma especial afasta a aplicação da norma geral. É a regra expressa pelo brocardo lex specialis derrogat generli. Em determinados tipos penais incriminadores, há elementos que os tornam especiais em relação a outros, fazendo com que, se houver uma comparação entre eles, a regra contida no tipo especial se amolde adequadamente ao caso concreto, afastando, desta formal a aplicação da norma geral

Na lição de Assis Toledo, ‘há , pois, em a norma especial é um detalhe a mais que sutilmente a distingue da norma geral’. Como exemplo podemos fazer uma comparação entre os crimes de homicídio e infanticídio. Fala-se em homicídio quando o agente produz a morte de um homem. No infanticídio, embora ocorra a morte de uma pessoa, determinadas elementares contidas no tipo do art. 123 do Código Penal fazem com que, se presentes, o fato deixe de se amoldar ao art. 121 do Código Penal para fazê-lo, com perfeição, ao tipo do art. 123, que prevê o infanticídio. Se uma parturiente, ao dar à luz um filho, sem qualquer perturbação psíquica originária de sua especial condição, desejar, pura e simplesmente, causar-lhe a morte, responderá pelo crime de homicídio. Agora, se durante o parto ou logo depois dele, sob a influência do estado puerperal, causar a morte do próprio filho, já não mais responderá pela infração a título de homicídio, mas sim por infanticídio, uma vez que as elementares contidas nesta última figura delitiva a tornam especial em relação ao homicídio”. 61. No caso, é inaplicável o princípio da especialidade porquanto os delitos em questão não possuem idêntica natureza e tutelam bens jurídicos distintos: enquanto o crime previsto no art. 171, § 3°, do Código Penal protege o patrimônio, a boa-fé, a segurança, a fidelidade e veracidade de atos jurídicos patrimoniais, particularmente em 12 GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 13 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. p.28. 25 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região relação aos atentados que podem ser praticados mediante fraude; o crime previsto no art. 40 da Lei n° 8.313/91 protege a arrecadação de tributos, na medida em que se busca reprimir a redução de renda tributável, mediante a obtenção do benefício de forma fraudulenta.

O estelionato violou os deveres jurídicos próprios da relação jurídicoadministrativa de fomento. No presente caso, beneficiários fraudaram a relação e, de forma consciente e deliberada, utilizaram-na para obter vantagens econômicas ou patrimoniais ilícitas. 63. Não houve mera prática de ilícito tributário, ou fraude tributária, violadora dos de veres ju rídicos próprios à relação jurídico-tributária. 64. Identificar no contexto do caso concreto mero ilícito tributário é ignorar todas as provas da forma e da dimensão da conduta criminosa no presente caso concreto. O reconhecimento de “concurso aparente” oculta a gravidade e extensão da conduta fraudulenta materializada na prática delituosa em detrimento de bens e serviços da União. III.3–) Da violação ao princípio da proporcionalidade 65. A prevalência da aplicação do Código Penal, em detrimento do tipo penal da Lei Rouanet, bem como a inaplicabilidade do princípio da especialidade na hipótese dos autos (Operação Boca Livre) tem fundamentação constitucional. 66. Nosso Estado Democrático de Direito consagra uma proteção diferenciada aos direitos culturais. Nos termos do art. 215, “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.

No mesmo sentido, conforme artigo 23, inciso V, “é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à 26 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação”. Estas disposições são próprias do Estado Social e democrático de Direito vigente (artigo 1º). 67. A atividade estatal de fomento para propiciar o exercício de direitos fundamentais culturais pode utilizar-se de benefícios tributários. No caso dos autos, a União lança mão da isenção tributária de seu imposto, observando os limites do seu poder de tributação (artigo 151, inciso III, da CF). 68. Cabe ao legislador federal definir como o Direito Penal realizará a tutela penal dos bens jurídicos metaindividuais, quando o exercício de direitos culturais está atrelado ao exercício de competência tributária. Não pode descurar da tutela da administração tributária. Mas igualmente não pode minimizar a tutela penal dos direitos fundamentais culturais. Em ambos os casos, a tutela penal não pode ser excessiva, mas igualmente não pode se revelar inoperante ou deficiente, porque o exercício da competência legislativa penal está submetida à racionalidade do princípio constitucional da proporcionalidade, como inerente ao Estado de direito e seu devido processo legal. 69. A respeito do princípio da proteção insuficiente, ressaltam Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco 13 : “Ao lado da ideia da proibição do excesso tem a Corte Constitucional alemã apontando a lesão ao princípio da proibição da proteção insuficiente. Schlink observa, porém, que se o Estado nada faz para atingir um dado objetivo para o qual deva envidar esforços, não parece que esteja a ferir o princípio da proibição da insuficiência, mas sim um dever de atuação decorrente de dever de legislar ou de qualquer outro deve de proteção.

Se se comparam, contudo, situações do âmbito das medidas protetivas, tendo em vista a análise de sua eventual insuficiência, tem- se uma operação diversa da verificada no âmbito da proibição do excesso, na qual se examinam as medidas igualmente eficazes e menos invasivas. Daí conclui que ‘a conceituação de uma conduta estatal como insuficiente, porque ‘ela não se revela suficiente para uma proteção adequada e eficaz’, nada mais é, do ponto de vista metodológico, do que considerar referida conduta como desproporcional em sentido estrito (unverhältnismässig im engeren Sinn)’”. 13 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de direito constitucional. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 333. 27 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região 70. No mesmo sentido, aponta a doutrina de Cláudio Pereira de Souza e Daniel Sarmento 14 : “O princípio da proporcionalidade é concebido tradicionalmente como um instrumento de controle de excessos no exercício do poder estatal, visando conter o arbítrio dos governantes. Porém, no cenário contemporâneo, sabe-se que os poderes públicos têm funções positivas importantes para a proteção e a promoção dos direitos e a garantia do bem-estar coletivo.

Após o advento do Estado Social, o Estado deixou de ser concebido como um mero adversário dos direitos, que deveria ser limitado ao máximo, em proveito da liberdade individual, como se afirmava no contexto do liberalismo burguês. Hoje compreende-se que é papel do Estado atuar positivamente para proteger e promover direitos e objetivos comunitários, e que ele ofende a ordem jurídica e a Constituição não apenas quando pratica excessos, intervindo de maneira exagerada ou indevida nas relações sociais, mas também quando deixa de agir em prol dos direitos fundamentais ou de outros bens jurídicos relevantes, ou o faz de modo insuficiente. Neste contexto, há quem defenda que o princípio da proporcionalidade pode também ser utilizado para combater a inércia ou a atuação deficiente do Estado em prol de bens jurídicos tutelados pela Constituição. A ideia de proporcionalidade deficiente como proibição deficiente (Untermasverbot) desenvolveu-se no direito germânico a partir da concepção de que os direitos fundamentais não são meros direitos negativos, mas possuem também uma dimensão objetiva, na medida em que tutelam certos bens jurídicos e valores que devem ser promovidos e protegidos diante de riscos e ameaças originários de terceiros. Reconheceu-se, portanto, um dever de proteção estatal dos direitos fundamentais – mesmo os de matriz liberal -, que se estende ao Legislativo, à Administração Pública e ao Poder Judiciário. Este dever de proteção é também chamado de imperativo de tutela. Daí decorre que o princípio da proporcionalidade também pode ser manejado para controlar a observância pelo Estado deste dever de proteção, de forma a coibir a sua inação ou atuação deficiente. (…) Há diversos contextos em que se discute a aplicação da proporcionalidade como vedação de proteção insuficiente.

No campo penal, debate-se até onde vai a liberdade do legislador para não criminalizar determinadas condutas que atentem gravemente contra bens jurídicos extremamente valiosos sob a perspectiva constitucional”. 14 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SAR MENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. p. 482-483. 28 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região 71. Ainda nesse particular, vale referência aos apontamentos feitos por Luciano Feldens 15 a respeito do tema: “A proibição de proteção deficiente encerra, nesse contexto, uma aptidão operacional que permite ao intérprete determinar se um ato estatal – eventualmente retratado como omissão, total ou parcial – vulnera um direito fundamental (pensemos, v.g, na hipótese da despenalização do homicídio. Relaciona-se, diretamente, pois à função de imperativo de tutela que colore os direitos fundamentais, notadamente no que demandam, para sei integral desenvolvimento, uma atuação ativa do Estado em sua proteção. Sob essa perspectiva, opera como ferramenta teórica extraída do mandado de proporcionalidade e que nessa condição predispõe-se a um controle (de constitucionalidade) sobre determinados atos legislativos, justamente no ponto em que medidas dessa ordem promovam uma indevida retirada da proteção (normativa) que se faz inequivocadamente necessária ao adequado desenvolvimento e desfrute do direito fundamental. Como aponta, na doutrina nacional, Ingo Sarlet: ‘o que importa no contexto é que o princípio da proporcionalidade, para além de sua habitual compreensão como proibição do excesso, abrange outras possibilidades, cuja ponderada aplicação, inclusive na esfera-jurídico penal, revela um amplo leque de alternativas.

Que tanto a proibição de excesso quanto a proibição de insuficiência (já por decorrência da vinculação dos órgãos estatais aos deveres de proteção) vinculam todos os órgãos estatais, de tal sorte que a problemática guarda conexão direta com a intensidade da vinculação dos órgãos estatais aos direitos fundamentais e com a liberdade de conformação do legislador’. (…) Em essência, mediante o recurso à proibição da proteção deficiente pretende-se identificar um padrão mínimo das medidas estatais com vistas a deveres existentes de tutela. Padrão este que, no que muito importa ao presente trabalho, também poderia ser exigido do legislador penal, momento esse que caracterizará o limite inferior de seu espaço de configuração. Por esse viés, reconhece-se na proibição de infraproteção um límite inferior de la liber tad de valoración del legislador, da qual decorre a necessidade de estabelecer-se um grau suficientemente adequado de proteção (…) de modo a permitir a seu titular o seu desenvolvimento 15 FELDENS, Luciano. A Constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 109-110. 29 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região em maior escala.

Como consequência, no plano jurisdicional, a adoção da proibição de proteção deficiente autorizaria o afastamento, por invalidez de normas que introduzam, em um determinado ordenamento ‘posto’ uma situação de desproporcionalidade extrema entre os bens jurídicos suscetíveis de proteção, promovendo, em relação aqueles sabidamente mais valiosos, uma hi pó ;tese de evidente infraproteção, a ponto de semear (como adiante exemplificaremos) um ambiente de notória desproporcionalidade, irrazoabilidade ou mesmo irracionalidade” – g.n. 72. A aplicação da lei penal está subordinada ao princípio constitucional da proporcionalidade. 73. Sobre o princípio da proporcionalidade, no Direito Penal, confira-se a lição de Cezar Roberto Bitencourt 16 : “Em matéria penal, mais especificamente, segundo Hassemer, a exigência de proporcionalidade deve ser determinada mediante ‘um juízo de ponderação entre a carga ‘coativa’ da pena e o fim perseguido pela cominação penal”. Com efeito, pelo princípio da proporcionalidade na relação entre crime e pena deve existir um equilíbrio — abstrato (legislador) e concreto (judicial) — entre a gravidade do injusto penal e a pena aplicada. Ainda segundo a doutrina de Hassemer, o princípio da proporcionalidade não é outra coisa senão ‘uma concordância material entre ação e reação, causa e consequência jurídico-penal, constituindo parte do postulado de Justiça: ninguém pode ser incomodado ou lesionado em seus direitos com medidas jurídicas desproporcionadas”.

Mesmo admitindo na hipótese a tutela do mesmo bem jurídico pelos tipos incriminadores – o que não se coaduna com a correta leitura dos tipos penais discutidos nos autos, restaria caracterizada verdadeira ofensa ao princípio da proporcionalidade, se prevalecer a aplicação do artigo 40 da Lei Rouanet, já que haveria um desequilíbrio manifesto entre a gravidade do crime praticado e a 16 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 125. 30 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região sanção criminal devida, seja em abstrato, seja em concreto, para tutela do bem jurídico metaindividual violado pelo delito. 75. A violação do princípio da proporcionalidade fulmina a cláusula constitucional do Estado de Direito e do devido processo legal substantivo. 76. Repise-se: no caso, tem-se que sequer existe a hipótese fática delineada no artigo 40 da Lei Rouanet. Isto foi totalmente desconsiderado pelo recurso hermenêutico descontextualizado ao princípio da especialidade.

No art. 40 da Lei n° 8.313/91 a conduta é obter a redução do tributo e o meio utilizado para alcançá-lo é a obtenção do benefício desta redução mediante fraude (mediante a inexecução total ou parcial de projetos culturais). Já o art. 171, § 3°, do Código Penal é mais amplo e abarca a conduta daquele que, além de obter a redução do tributo, obtém para si (como é a hipótese dos autos) vantagem ilícita, induzindo alguém (no caso, a União Federal), em erro mediante fraude. O primeiro está limitado à relação jurídico-tributária. O segundo contamina a relação jurídico-administrativa (material) de fomento público. 78. Vê-se que a tipificação da conduta ao art. 171, § 3°, do Código Penal) é medida de rigor, sob pena de o Poder Judiciário chancelar a tutela ou proteção deficiente de bem jurídico-penal violado pela prática do crime, nas circunstâncias do caso concreto, sendo que este bem jurídico recolhe inegável. 79. Assim, mesmo que se admita (por respeito à argumentação) que os tipos criminais em discussão sejam aplicáveis ao fato punitivo, não é legítimo se defender a aplicação meramente formal e dogmática do princípio da especialidade, que não dá conta da proteção adequada e eficiente que o Direito penal deve propiciar ao bem jurídico, nos termos preconizados pela Constituição de nosso Estado Democrático, que valora em grau superlativo a tutela de bens culturais perseguidos pela função administrativa de fomento.

80. Conclui-se, assim, que a decisão proferida pelo E. Tribunal Regional Federal da Terceira Região violou dispositivos infraconstitucionais restando aberta, com 31 MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria Regional da República – 3ª Região base no art. 105 III, da Constituição Federal, a presente via especial, para que seja reformada a decisão combatida. – IV – PEDIDO RECURSAL 81. Ante o exposto, demonstrada a violação direta ao art. 171, § 3°, do Código Penal e ao art. 40 da Lei n° 8.313/91, requer o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL o conhecimento e provimento do presente Recurso Especial para que seja cassado o acórdão recorrido, restabelecendo-se a classificação da conduta imputada a JOÃO AYRES RABELLO FILHO para aquela prevista no art. 171, § 3°, do Código Penal”, finalizou o procurador. (Jornalista Ronan Almeida de Araújo).

 

 


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